Gulas@ARNOLFO

Na paisagem bucólica da Toscana esconde-se uma vila de cristal onde, no passado, Cavaleiros e Donzelas ouviram o brilho das suas ruas e vielas.

Ouvir o brilho? Este brilho sim. Porque mais do que brilhar, o cristal ouve-se no copo. Um sibilar interminável e "diapasónico" típico da vila de Colle di Val d'Elsa. Esta vila medieval teve o seu papel destacado ao fornecer, em séculos passados, 15% do cristal de todo o mundo e 80% do cristal italiano.

Agora, o brilho prova-se no Arnolfo, um restaurante charmoso, gerido há 40 anos por 2 irmãos simpáticos e humildes a quem a vida gastrónomica de 70 e tal anos deu uma sabedoria e humildade que os levou ineroxavelmente às 2 Estrelas Michelin, estrelas essas que mantêm "piano, piano", como dizem os transalpinos. Com muita calma mas determinação.
Ambiente variado, com grupos e casais de todas as idades e decor também ele formal em tons de champanhe e decoração de sala de leitura. Vistaça tipicamente Toscana das janelas generosas do espaço, a dar ao postal as cores que ele merece. 
A criatividade e a fusão da comida tradicional Toscana deu-lhes a conquista dessa distinção. O caminho é percorrido mantendo a tradição de uma zona riquíssima em carnes, enchidos e queijos mas inovando na apresentação e elevando o sabor aos horizontes dos vinhedos desta região.

Um menu vegetariano (120 eur) e outro de proteína animal (180 eur) propõem uma degustação para os mais curiosos como nós. Escolhemos a prova mais abrangente por incluir carne e peixe. Chamaram-lhe Eighty Two/Twenty Two pelos 40 anos que o Arnolfo faz este ano (1982-2022). Escolhi ainda o pairing de 7 vinhos (120 eur). 

A degustação começa com um pão caseiro de massa mãe, umas foccacias de tomate e zucchini (curgete) e um grissini numa massa tipo folhada que comi do princípio ao fim sem conseguir travar a meio. 
Seguiram-se as cortesias do chef: um amuse bouche de pregado fumado, outro de puré de grão em massa folhada e azeite e um pastel de pregado com pepino. Sem nada surpreender, tudo assenta numa linha de perfeitos pontos de cozedura e ingredientes sazonais.
O primeiro prato lambuzou-me em frescura. Prato frio com um camarão tigre em galantine (gelatina) com finas lâminas de pêssego e... uma língua de gato! Roornronei com a combinação! Fresco, elegante, delicado e escudado por uma gamba da costa com caviar Herring por cima. Uma das degustações mais bem conseguidas de toda a experiência. O pairing recaiu sobre um vinho branco muito leve e acidez equilibrada. Um Chenin Blanc 2019 de Laura David. 
Seguiram-se mais 3 cortesias do chef, uma sopa de peixe tipica da região de Livorno, que leva pão por baixo, marisco e conchas, polvo e lulas e algum peixe da estação. Neste caso, escolheram uma loncha de pargo num molho punjente de sabor. A seguir uma espuma de peixe e por último, um mimo de javali em cozedura lenta com redução de frutos do bosque fez as simpatias do chef. 

I alora lá pasta! 3 raviolis esculpidos em forma de estrelas de anis e 3 texturas de Pato no ensemble. Pato em patè, dentro do Ravioli, pato em cubos e ainda um lombo aromatizado com funcho (
imagem que ilustra este artigo). Sem surpreender, bom domínio da técnica e qualidade da massa embora no pato tivesse sentido falta de sal para intensificar o sabor. Acompanhou com um Chardonnay Vile dês Romans 2019 equilibrado com fruta madura a harmonizar muito bem. 
Seguiu-se um pargo ao vapor com 3 tipos de Beringelas em diferentes texturas e um molho de basílico e limão. Prato fresco mas com o corpo das beringelas em cozeduras defumadas a dar estrutura. O Vernaccia di San Gimignano Alata 2020 foi o branco escolhido, também ele vegetal a ligar bem com este momento. Tudo guloso.
Passámos para a carne. Não podia faltar a Chianina, uma raça bovina certificada desta zona que faz lembrar a nossa charolesa. Lombo tenro embora com densidade e muito sabor. Acompanhou com uma jardineira de legumes e uma salada com molho de pepino. E como carnes escuras pedem vinhos escuros, o Chianti Clássico Grand Selezione Fonterutoli 2015 tinto, ombreou bem este prato, com a leveza e equilíbrio tânico do Chianti a jogar com a subtileza do lombo mal passado e suculento da vaca.
E como também não podia faltar, aterrou logo de seguida um pombo estufado no nosso prato, como epílogo de carnes. Acompanhado com trufa preta, também ela muito típica da região, uma barata assada e uma camada de cebola grelhada envolta no chamuscado da mesma para lhe dar toques de fumado. Incluía ainda uma pequena laminha do fillet do pombo e uma fritura da sua coxa, em picadinho. Uma prova totalmente vertical do animal em que só faltou comer-lhe as asas! Acompanhou com um vinho de topo da região: Brunello di Montalcino 2010 Fuligni. Aveludado, estruturado e muito bem amado! 
No capítulo das sobremesas um mil folhas com mel e bagas selvagens harmonizou com um vinho da terra a que chamam de Vin Sant que é muito parecido com o nosso late harvest em que a fermentação é tardia dando mais açúcar ao resultado final. Quase licoroso sem o ser. 
Um último momento para acompanhar a "Bica", em modo Lungo (só porque a italiana não me enche as medidas) apontou para os habituais petit fous variados do chef pasteleiro, desde mini Pavlovas a trufas, creme brullè, um biscoito seco com amêndoa (Cantucci) e um torrão Italiano tipo Alicante a que eles chamam Montenierri. 
Tudo isto servido por um staff de sala algo formal para os dias de hoje - fardado e austero, sem narrativa e algo robotico na explicação das pratos. Percebe-se sendo um serviço marcadamente à francesa com camareiros esforçados, embora com alguma dificuldade para a comunicação em inglês, e com a rigidez de outros tempos, a meu ver, já sem ligação obrigatória com a alta cozinha. 

550 euros para 2 pessoas, valores alinhados com um 2 Estrelas Michelin e considerando que Itália está uns furos acima no custo de vida face a Portugal. 

Fiquei com a Toscana no coração mas foi o estômago a sentir toda essa hospitalidade!

@gulasdosardinha

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