Gulas@RICARD_CAMARENA

Quando eu era pequenino nunca fui à Disneyworld e a Eurodisney era ainda um terreno baldio... E não precisava de Pai Natal, Fada dos Dentes ou Coelho da Páscoa para me fazerem surpresas. 

O meu Pai viajava muito, na marinha mercante. E o seu regresso a casa era sempre sinónimo de deslumbramento. Um boomerang da Austrália, um vídeopack da América ou um simples yo-yo peruano.

Quando cresci, a capacidade de me surpreender diminuiu e as coisas mais simples tornaram-se complicadas... Procurei, incessante, por experiências que me fizessem sentir um WOW e arrancassem sorrisos pueris da minha cara como os que tive na infância.

O carro cada vez mais rápido, a viagem cada vez mais exótica, o telemóvel cada vez mais avançado, a refeição cada vez mais sofisticada. Todos queremos entrar na órbita do deslumbramento e na procura do inacreditável. De momentos que nos façam pintar a realidade de todas as cores, sonhar alto e ansiar pela próxima experiência que se quer ainda mais "tcharam" que a anterior.

Ter estado em mais de 20 restaurantes "macarronados" pode tornar-me mais pesado por um lado - na barriga - e mais leve por outro - na carteira. Mas uma coisa estou convencido: são as disneyworlds da gastronomia que ainda me abençoam com deslumbramento, que me fazem recordar sabores de infância, que (ainda) conseguem fragmentar preconceitos e fazer perder muitas virgindades do meu insaciável palato.

A GULA
Toda a experiência foi uma gula imensa. Desde que nos sentimos e nos serviram uma bebida caseira para descontrair a boca. Chamaram-lhe Umami por ser feita de 3 ingredientes com este composto: Espargos brancos, tomate e alga Kombu.

Acompanhou um amuse-bouche de 3 peças: tosta de trigo com uma anchova maturada 4 anos em azeite, um tártaro de vaca em rolo de pele de abóbora e uma cebola assada com manteiga de anchova. Tudo isto acompanhado de um vinho doce que fez a ponte entre o sagrado e o profano. 

O que se seguiu foi a epitome do serviço de fine dining onde o cliente está sempre no cento da experiência. Fomos convidados para ir à bancada do chef provar várias peças de atum com várias curas deste tunídeo. É preservado utilizando alfarroba e as texturas e gordura variam em função da zona do peixe e do tempo de cura. Desde o incrível Toro à parte branca do nervo entre os lombos. A experiência faria inveja a qualquer análise de triglicérideos de um comensal menos precavido.

Acompanhou com uma infusão fria de verduras assadas, Hierbabuena (hortelã) e lulas, casamento sem ligação aparente. Mentes mais iluminadas descobrem combinações e padrões onde apenas vemos desconexão... Assim foi durante 15 curtos minutos de gordura animal ao mais alto nível de exigência e sabor.

Novamente sentados à mesa, chegou uma sopa fria de verduras de primavera com flor de abóbora, curgete baby, maçã e cerejas que temperou com frescura o meu palato ainda revestido a unto de tanto atum que provei. A seguir, o salino de um camarão a que chamam Quisquillas com um cremoso de caviar, tapioca e coco. Intenso de maresia desde a ponta da língua até ao final do esófago.

E do mar fomos para os aromas e texturas de inverno com um tomate da horta confiado em manteiga de ovelha e servido em cima de folhas de árvore de cores outonais. Um regalo à estética e um sabor orgânico e tradicional. 

Um dos momentos que mais me surpreendeu foi quando aterrou uma simples cebola à minha frente. Sabia que o chef gostava de trabalhar o peixe e os legumes mas nada me preparava para o que aí vinha... Uma cebola trufada com enguia fumada em molho holandês de levedura fresca. Cremoso como o holandaise deve ser, intenso sabor da engua mas ao menos tempo harmonioso pela trufa e adocicado da cebola. E senti mais um daqueles sorrisos infantis de deslumbramento infantil a vincar a minha expressão... 

Até aqui a harmonização de vinhos foi uma maridagem consistente com exceção de um Chateau Chalon que não ligou muito bem com o prato seguinte, uma ostra com abacate, sésamo se horchata de galanga (uma bebida típica de Valência feita não com galanga mas com chuva, um tubérculo que é espremido e a sua água misturada com açúcar e bebida muito fresca). 

Após esse momento que ficou a bicos de pés do paraíso, voltámos a subir mais um degrau do éden. Gamba roxa al ajillo, judia baby (tipo de feijão verde cilíndrico e mais pequeno) e gema de ovo biológico. Acompanhou com um consomé das suas cabeças  e com um champanhe Beaune Champs-Pimont 2018 que me mataria de cirrose porque o haveria de beber com os cereais do pequeno almoço e em substituição do chá da noite e biscoitos. Suave na bolha, acidez e frescura vibrantes e um nobre casamento "amariscado" de uma subtileza semelhante aos gradientes de cor de um ocaso. 

Seguiu-de aquilo pelo qual Valência é conhecida. O arroz. Este era chamado "meloso", o nosso malandrinho, com espargos verdes e café. Casou com um branco Pepe Mendonza, 97% Macaber e 3% Moscatel Romano igualmente inesquecível. A maridagem estava nas bodas de ouro!

 
Um prato que não surpreendeu apesar do equilíbrio de sabores e presença forte de unami foi o espargo branco em sopa fria de amêndoas, clochinas (mexilhões) e ervas frescas. Acompanhou o único tinto da refeição, um Douro espanhol (Ribera del Duero 2015 - Domínio del Anguila) que também não foi feliz embora a execução inquestionável.

A GULOSEIMA
Neste capítulo, Ricard Camarena não é Hércules. Para já porque não há 12 sobremesas como trabalhos deste super herói e depois porque tem uma abordagem a sobremesas mais comedida, com sabores equidistantes e ingredientes pouco controversos. Contudo há um twist: existe sempre um legume para dar alguma personalidade, alinhada com a vocação do Ricard para trabalhar os vegetais. 

O primeiro momento teve como protagonista a beterraba com um leite de cabra batido em textura de requeijão a envolver uns morangos silvestres salpicados com aneto. Sabor longe do monástico mas perto da cultura nipónica em que o doce é sentido com muita subtileza e pouca intensidade salivar.

A calabaza (abóbora) é nossa conhecida em algumas sobremesas. Desde sonhos, filhoses, pudim ou compota. Neste caso, Ricard Camarena interpretou um pastel  de abóbora ao que juntou canela vinagre e cacau com as sementes (pevides) a encimar o arranjo. Não surpreendeu pelo sabor mas pelo uso inteligente do vinagre e o cacau para cortar o doce sem o fazer de forma a que se evidênciasse. Ainda no campo da abóbora um dos petit fous finais era também um guardanapo de abóbora que maridou o café juntamente com um cannoli de café e um biscoito de limão. 

Tudo guloso e espantoso por comer tanto açúcar sem o sentir nos dentes. Apontamento final para um frasco de Lemon Curd oferecido no final da refeição como cortesia do chef para nos lembrarmos delr nos pequenos almoços do mês seguinte. O cliente sempre no epicentro da experiência e a ser mimado até à exaustão!

O GULAG
Uma beringela frita com miso que estava na degustação não foi servida. Ou melhor, nem eu nem a minha parelha nos lembramos de a comer ou desta sobremesa com recurso a imagens vistas mais tarde em opinações gastronómicas de outros comensais. Não quero acreditar que um serviço de excelência como este se esqueceria de uma sobremesa mas os vinhos em prova não foram assim tantos e em quantidades que fizessem 2 pessoas ter amnésia doceira... Especialmente lusitanos!
Existiram também 2 maridagens menos bem conseguidas, com vinhos que não estavam tão bem harmonizadas com os pratos, especialmente o Chateau Chalon com a ostra.

 
O valor da refeição (€565 para 2 pessoas) também está puxadote para a experiência mas ser afagado como a equipa de sala e o próprio chef nos mimaram, vale esse extra pela paixão pela cozinha sustentável e pela entrega abnegada ao comensal!

Nota: Soube agora que Ricard Camarena ganhou uma bela poltrona na lista dos 100 melhores restaurantes do mundo. Merecidíssimo! 

@gulasdosardinha

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