Gulas@G_POUSADA

Existe uma aldeia de irredutíveis gauleses num enclave entre 4 campos militares romanos, que teima em se manter irredutível e desanexa do império romano. A sua poção mágica é o segredo da invencibilidade destes personagens que Uderzo e Goscinny imortalizaram em papel.

No alto de uma colina transmontana, em terras de Bragança, existe também uma fortificação gastronómica que teima em retirar os macarrons Michelin das principais cidades e locais de peregrinação turística do país (aka Lisboa, Porto e Algarve) e que, em conjunto com " A Cozinha", em Guimarães, formam um outro enclave da cozinha de Autor com fortes ligações à região, numa tentativa bem sucedida de promover os produtos e saberes da região sobre qualquer exercício egocentrista de se tornarem donos e senhores dessa herança. São sim, embaixadores insofismáveis de uma campanha regional para colocar as restantes capitais de distrito no mapa da gastronomia de excelência internacional.

Os obstinados prisioneiros da gleba, como chamou Pires Cabral aos transmontanos (escritor).

E para perceber como conseguimos ver o brilho de uma estrela Michelin "Atrás dos Montes", é imperativo partilhar convosco a diferença entre:

1) Restaurantes que passam de zero para uma Estrela Michelin, trocados por miúdos.

2) Restaurantes que passam de uma para duas Estrelas Michelin, trocados por miudos.

(Não, não tenho um ponto (3) porque não é habitual comer fora (de fronteiras) e por isso 3 estrelas para mim só olhando para o céu!)

Nota prévia do "trocado por miúdos": Há cinco critérios de avaliação reconhecidos publicamente para atribuição dos "Macarrons" Michelin. Quero não só evitá-los como trocá-los, neste exercício, por critérios mais empíricos e espirituosos ou estaria a escrever mais um texto jornalístico como tantos que por aí andam. Isto é uma "opinação gastronómica" e os critérios são dela recorrentes i.e: vem da minha experiência.

Critérios MICHELIN:
1) Qualidade dos produtos
2) Domínio do sabor e técnicas culinárias
3) Personalidade do chef na sua cozinha
4) Relação qualidade/preço
5) Consistência entre visitas

Critérios MICHELÃO:
(como são o superlativo absoluto sintético, têm designações mais pomposas!)

1) Alinhamento com o Gourmet Rural
2) Índice Pele de Galinha
3) Taxa de Paciência
4) Consistência do Oráculo
5) Risco de Default

Numa perspectiva simplista, passa de ZERO PARA UMA ESTRELA quem cumpre todos os critérios Michelin acima, nos mínimos que eles consideram olímpicos. Alguns mais vaporosos que outros (e discutíveis) mas conseguimos engolir isso.

Passa de UMA PARA DUAS ESTRELAS quem cumpre os critérios Michelin e ainda tem um conceito vincado, cheio de carácter e tão característico que não preciso de abrir os olhos para saber em que restaurante estou.

Passar de DUAS PARA TRÊS ESTRELAS?

Peço a alguém que me ajude. Mas desconfio que mete ficção científica pelo meio...

Agora vou tentar encaixar o G Pousada  nos Critérios MICHELÃO, fruto da minha experiência. 


ALINHAMENTO COM O GOURMET RURAL

O Gourmet Rural, como o nome indica, gosta de comer bem. Mas gosta também de perceber aquilo que lhe metem à frente. Gosta do ingrediente pelo ingrediente. Se tem molho, quer é saber o que leva, se é cozinhado a baixa, media, alta temperatura ou a vácuo, quer é saber se é cozido, grelhado ou estufado. Ponto. O Gourmet Rural é o português que sabe comer bem, tem acesso à qualidade de produto e é isso que encontramos no seu frigorífico e congelador. Seja barato ou caro. Mas é também o português que sabe que todos gostamos de aviar 4 dúzias de sardinhas a cada fim de semana de Verão mas se assim for, acabamos todos sem sardinhas em poucas décadas. Por isso advoga em alternar sardinha pelo bom carapau, sarda, cavala, ferreira, besugo, sargo, anchova e até taínha que as há bem boas. O Gourmet Rural está nos antípodas da cozinha francesa clássica mas se for preciso come e aprecia porque também ela é saborosa. Mas faz-lhe espécie não conseguir perceber puto do que lá está, tal é a quantidade de molhos, pontos de cozedura, reduções e ervas aromáticas. Simplesmente prefere algo mais simples, (passo o pleonasmo). 

G POUSADA - . G Pousada passa o teste do Gourmet Rural com distinção! Toda a influencia da sua carta, a quase totalidade da garrafeira e do staff de cozinha e de sala são transmontanos. O G Pousada quer sofregamente mostrar o melhor que se pode fazer com tudo o que se pode encontrar na região transmontana, num princípio de proximidade com o produtor e de reinterpretação de alguns dos receptuários mantendo o tal elo com o passado. Exemplo disso foram uns pastéis de massa tenra recheados com moleja (parte glandular da vitela, o Timo, junto ao pescoço que se encontra sobretudo nesta região) ou o feijão Bragançano numa sulmine parelha com ouriço do mar, robalo e chouriço de bísaro.
É um merecido enaltecimento aos produtores e produtos regionais, como indicam no seu texto de apresentação deste projeto.


ÍNDICE PELE DE GALINHA

Independente da temperatura da sala, que pode dar uma resposta fisiológica inata: frio dá pele de galinha, calor dá gotas de suor no cachaço, aqui, a pele de galinha é um tal estado de alma que ao atingir o Zénite, após a primeira garfada (só vale a primeira), dispara uma resposta hormonal de elevada excitação que se reflete em pupilas dilatadas, salivação intensa, encartilhanço dos dedos mindinhos dos pés e, claro... pele de galinha.

G POUSADA - Os irmãos Geada, nomeadamente o Óscar, Chef da cozinha, gostam de nos trocar as voltas com remixes constantes entre carne e peixe para mostrar que nenhum deles é rei e senhor de um prato. A combinação "Coentros, Maçã, Vieira e Lardo de Porto (camada de gordura por baixo da pele de certas partes do corpo) foi de Merlim. Supremos de alquimia também no casamento do Robalo com o Chouriço de Bísaro, Ouriço do Mar e feijão Bragançano. Fui ao tapete em knockout com um feroz carabineiro escudado com cachaço de porco bísaro.
A intrepidez é de louco mas a temeridade é de bravo. É o Óscar é um dos bravos da cozinha deste país. Gosto sempre de citar o génio humorístico de Raul Solnado neste tema. Aquilo não me deu pele de galinha, deu-me uma capoeira em cada olho!


TAXA DE PACIÊNCIA

Aqui saímos da cozinha e centramo-nos no serviço. Uma componente que se torna tão mais importante quanto sofisticada é a cozinha de um restaurante. Na Tasca da Marreca, em Burrunhais de Cima, o prato vem para a mesa e a única coisa que considero perguntar (e ter algum feedback do empregado) é se tem piri-piri e se sim, se é daqueles que levanta um morto ou dos que só fazem cócegas no céu da boca. Num restaurante de autor, com a personalidade que deverá ter, vou perguntar 100 x mais coisas e espero igual nível de paciencia do dedicado empregado de mesa, como espero da Marreca em descrever o seu piri-piri.

G POUSADA - O António, irmão do Óscar e diplomata de mesa destacado para a nossa experiência, teve toda a disponibilidade para isso e se fosse preciso - como foi - em mimar o nosso palato com harmonizações de vinhos supremas, e muitos fora do pairing e fora das doses habituais, que mantiveram os meus trigliceridos num periclitante balanço. Foi assim quando explicou o que era a moleja, o lardo ou porque é o porco bísaro tão diferente do porco rosado da história dos 3 porquinhos. De sublinhar a assertividade em dar à prova novos vinhos seja por iniciativa própria ou por não apreciarmos tanto algumas das propostas iniciais do pairing. 

CONSISTÊNCIA DO ORÁCULO

Mantemos as agulhas no serviço. E de quão profissional, dedicado e apaixonante ele pode ser. Aqui premeia-se a honestidade em detrimento da chica-espertice, o conhecimento acima da sabedoria popular (que vale noutros casos). Se pergunto ao empregado porque está o meu peixe grelhado como o faria o Diabo no inferno e ele me diz que aqui na casa grelhamos o peixe assim... Ou se posso acompanhar o bitoque com arroz em vez de batata frita e ele me diz que nao têm arroz, fico pior que estragado. Ou como me disseram no outro dia quando já estávamos a comer as pizzas e o pão de alho de entrada ainda não tinha chegado: - Desculpe mas o nosso pão de alho é uma receita que demora muito tempo a fazer. PelamordeDeus... Mas há quem vá mais longe e me diga, como me disseram num boteco da Nazaré, que o peixe - que jurei a pés juntos não ser fresco - é fresco sim senhor porque ainda o descongelámos esta manhã!

G POUSADA - O Oráculo responde a todas as perguntas com exactidão, clareza e contexto. Assim era o António. Especialmente nos vinhos e nas histórias que se encerram em cada garrafa. E nessa epopeia descobrimos segredos guardados na garrafeira como um Frei João de 1997 (Bairrada). Para além deste néctar, deslizaram ainda pela nossa glote narrativas à volta de quase uma dezena de vinhos: uma Quinta de Arcossó 2015 e um Trovisco 2013, ambos tintos transmontanos, um Eremitas 2017 e um Quinta da Silveira Reserva 2013 (brancos do Douro), um Vale de Passos 2016, uma Menina da Uva e um Terras do Salvante (brancos transmontanos) e ainda um Saroto (Rosé transmontano). Tudo isto numa explicação clara e empírica deste nosso inexcedível cicerone. E com profissionais como este e um ÍNDICE DE PACIÊNCIA alto, podemos ficar à mesa um dia inteiro.


Mas nesse êxtase todo e na disponibilidade total para ficarmos à mesa o dia inteiro a massajar os sentidos, passamos para o último criterio "Michelão", o RISCO DE DEFAULT.

Aqui podiam encaixar os conceitos de Share of Wallet, Value for Money ou Preço Psicológico. Ou ainda a relação Qualidade/Preço que se torna tão difícil de avaliar quão etéreo é o conceito de qualidade para cada um de nós. Já o preço, esse é bem real e os restaurantes devem respeitar o comensal com base nele porque há aí muita falta de respeito e de senso a colocar preços nas cartas. Valores absurdos por doses nanoscópicas só porque o restaurante tem hype ou é estrelado ou por menus de degustação que consideram ser dignos de Bacco quando na realidade são uma miscelânea de pratos sem qualquer critério, ordem ou narrativa. Só conheci um resturante na minha curta vida em que o preço praticado é infinitamente menor que a minha percepção de qualidade (em Lisboa...) e chama-se Grelhados de Alcântara. Apareçam lá e tirem as vossas ilações (passo a publicidade).

G POUSADA - Os menus são inspirados em pintores de origem transmontana ou que lá viveram em alguma altura da sua vida. Nós apostámos no Nadir Afonso (180 euros + 70 euros pelo pairing de vinhos ) e no Armando Alves (125 euros mais um pairing de 38 euros.) Não se pode dizer que chumbe neste critério MICHELÃO mas os dois menus de degustação incluem, na sua maioria, pratos com ingredientes de preços acessíveis para um projecto de fine dining. Excepção ao Carabineiro, à gamba vermelha e ao robalo de mar. Nesse sentido, pagar 413 euros por dois menus de degustação e pairing de vinhos considero elevado mesmo considerando uma experiência Michelin e desconsiderado estar em Trás-os-Montes porque neste campeonato, a região não conta para nada. (o pairing de vinhos que escolhi era o mais caro e haviam opções mais baixas na carta). Daí ao risco de default é um tiro - sendo que default é a capacidade de honrarmos os nossos compromissos monetários para com terceiros. Nesse campo, não sei se vou conseguir pagar o Gás, a Luz e a Água deste mês mas a experiência valeu cada garfada... 


E para quem teve a paciência de chegar ao final desta minha "opinação", só me resta dizer uma coisa: Que estes irredutíveis transmontanos continuem a marcar a região no mapa de Portugal porque os 500 Km que os separam da minha terra fazia-os todos os dias com um patrocínio de uma qualquer gasolineira!

@gulasdosardinha

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