Gulas@BELCANTO

Existe há 62 anos mas está longe da reforma. Continua com todo o fulgor de um espaço que se quer ultrapassar a si mesmo todo os anos. E para combater o bom combate, em anos de guerra viral, conseguiu inovar na sua oferta e fintar a "peste" com marketing de guerrilha. Quem imaginou ver um 2 estrelas Michelin com Promoções: PAGUE 1, LEVE 2?! 

Uma filosofia chinesa diz que a vida é melhor em tempos desinteressantes, de paz e tranquilidade, que em tempos interessantes, de dificuldades e agruras como é este 2021 pandemicó-depressivo. 

Hoje, atiro-me, cheio de interesse, a uma partilha convosco para partilhar a diferença entre Critérios Michelin e os Critérios Michelão. 

Há cinco critérios de avaliação reconhecidos publicamente para atribuição dos "Macarrons" Michelin. Quero não só evitá-los como trocá-los, neste exercício, por critérios mais empíricos e espirituosos ou estaria a escrever mais um texto jornalístico como tantos que por aí andam. Isto é uma "opinação gastronómica" e os critérios são dela recorrentes i.e: vem da minha experiência.

CRITÉRIOS MICHELIN
1) Qualidade dos produtos
2) Domínio do sabor e técnicas culinárias
3) Personalidade do chef na cozinha
4) Relação qualidade/preço
5) Consistência entre visitas

CRITÉRIOS MICHELÃO:
(o superlativo absoluto sintético com designações mais pomposas!)

1) Alinhamento com o Gourmet Rural
2) Índice Pele de Galinha
3) Taxa de Paciência
4) Consistência do Oráculo
5) Risco de Default

Numa perspectiva simplista, passa de ZERO PARA 1 ESTRELA o projeto que cumpre todos os critérios Michelin acima, nos mínimos que eles consideram olímpicos. Alguns mais vaporosos que outros (e discutíveis) mas conseguimos engolir isso.

Passa de 1 PARA 2 ESTRELAS quem cumpre os critérios Michelin e ainda tem um conceito vincado, cheio de carácter e tão característico que não preciso de abrir os olhos para saber em que restaurante estou.

Passar de DUAS PARA TRÊS ESTRELAS?

Peço a alguém que me ajude. Mas desconfio que mete ficção científica pelo meio...

Encaixemos o BELCANTO nos Critérios MICHELÃO, fruto da minha experiência:

ALINHAMENTO COM O GOURMET RURAL

O Gourmet Rural, como o nome indica, gosta de comer bem. Mas gosta também de perceber aquilo que lhe metem à frente. Gosta do ingrediente pelo ingrediente. Se tem molho, quer é saber o que leva, se é cozinhado a baixa, media, alta temperatura ou a vácuo, quer é saber se é cozido, grelhado ou estufado. Ponto. O Gourmet Rural é o português que sabe comer bem, tem acesso à qualidade de produto e é isso que encontramos no seu frigorífico e congelador. Seja barato ou caro. Mas é também o português que sabe que todos gostamos de aviar 4 dúzias de sardinhas a cada fim de semana de Verão mas se assim for, acabamos todos sem sardinhas em poucas décadas. Por isso advoga em alternar sardinha pelo bom carapau, sarda, cavala, ferreira, besugo, sargo, anchova e até taínha que as há bem boas. O Gourmet Rural está nos antípodas da cozinha francesa clássica mas se for preciso come e aprecia porque também ela é saborosa. Mas faz-lhe espécie não conseguir perceber puto do que lá está, tal é a quantidade de molhos, pontos de cozedura, reduções e ervas aromáticas. Simplesmente prefere algo mais simples, (passo o pleonasmo).

BELCANTO - Pouca aposta no Gourmet Rural, com uma cozinha muito sofisticada, apontamentos a roçar a confeção molecular, com esferizados constantes, muita construção artística e uma surpresa assente nas combinações mais do que na materia primordial. Aproxima-se de uma cozinha francesa clássica sem grandes pruridos sobre o que é ou não sustentável. Ou pelo menos não nos foi passada qualquer narrativa em contrário. 

ÍNDICE PELE DE GALINHA

Independente da temperatura da sala, que pode dar uma resposta fisiológica inata: frio dá pele de galinha, calor dá gotas de suor no cachaço, aqui, a pele de galinha é um tal estado de alma que ao atingir o Zénite, após a primeira garfada (só vale a primeira), dispara uma resposta hormonal de elevada excitação que se reflete em pupilas dilatadas, salivação intensa, encartilhanço dos dedos mindinhos dos pés e, claro... pele de galinha.

BELCANTO - Uma galinha servida no Belcanto viria suada em 8 horas com ervas aromáticas, depois reduzida em vinho licoroso até aos ossos e com o produto final ainda se faria um paté que depois era... isso mesmo: Esferizado. Rábulas à parte, é uma cozinha que surpreende pelas texturas, combinações e um irrepreensivel domínio dos sabores e cozeduras. Mergulho no Mar do Norte leva oprémio "Pele de Galinha Bronzeada". Um tártaro de atum com ostra que harmonizou na perfeição com o Mirabilis Branco (Douro), pela ligação do cítrico e a maçã verde, a ostra e o tunídeo. Prémio "Pele de Galinha Prateada" para as cremosidades viciantes da Lua Cheia (apresentada esferizada com acabamento pérola) de foie gras e vinho do Porto. O Prémio Pele de Galinha Dourada" vai para os sabores sinfónicos da gema de ovo a baixa temperatura, com tupinambur em diferentes texturas com jus trufado de aves, manteiga de avelã, mousse de enguia fumada e ovas curadas. Se apanhei 10% de toda a cariedadr deste prato foi muito bom (!) mas essa ínfima percentagem foi o suficiente para valer o ouro. 

TAXA DE PACIÊNCIA

Aqui saímos da cozinha e centramo-nos no serviço. Uma componente que se torna tão mais importante quanto sofisticada é a cozinha de um restaurante. Na Tasca da Marreca, em Burrunhais de Cima, o prato vem para a mesa e a única coisa que considero perguntar (e ter algum feedback do empregado) é se tem piri-piri e se sim, se é daqueles que levanta um morto ou dos que só fazem cócegas no céu da boca. Num restaurante de cozinha de autor, com a personalidade que deverá ter, vou perguntar 100 x mais coisas e espero igual nível de paciencia do staff de mesa, como espero da Marreca em descrever o seu piri-piri.

BELCANTO - Alguma desilusão no envolvimento - talvez demasiada expectativa - e na criação de uma experiência imersiva. Falta de uma história bem contada para acompanhar uma experiência pupilativa de excelência. Contudo, staff disponível, com conhecimento técnico, dedicação e algumas frases feitas com piada, que atiravam com os pratos que serviam. Contudo, longe de outras experiências Michelânicas neste parâmetro. Apontamento para o Daniel, o único nome que menciono de todo o staff, por ter uma placa na lapela que indicava apenas "Trainee" . Ainda tinha que fazer umas pistas na sala para merecer o seu nome próprio e por isso a referência para motivar este jovem camareiro. 

CONSISTÊNCIA DO ORÁCULO

Mantemos as agulhas no serviço. E de quão profissional, dedicado e apaixonante ele pode ser. Aqui premeia-se a honestidade em detrimento da chica-espertice, o conhecimento acima da sabedoria popular (que vale noutros casos). Se pergunto ao empregado porque está o meu peixe grelhado como o faria o Diabo no inferno e ele me diz que aqui na casa grelhamos o peixe assim... Ou como já me disseram, quando já estávamos a comer as pizzas e o pão de alho de entrada ainda não tinha chegado: - Desculpe mas o nosso pão de alho é uma receita que demora muito tempo a fazer. PelamordeDeus... Mas há quem vá mais longe e me diga em plena Nazaré, que o peixe - que jurei a pés juntos não ser fresco - é fresco sim senhor porque ainda o descongelámos esta manhã!


BELCANTO - Staff conhecedor, uns mais que outros. Perguntei que me fartei e nunca fiquei sem resposta. Especialmente do Gonçalo, mais saído da casca que todos os outros, muito espirituoso a explicar as coisas chatas e técnicas. 
Mas nesse êxtase todo e na disponibilidade total para ficarmos à mesa o dia inteiro a massajar os sentidos, passamos para o último criterio "Michelão", o... 

RISCO DE DEFAULT

Aqui podiam encaixar os conceitos de Share of Wallet, Value for Money ou Preço Psicológico. Ou ainda a relação Qualidade/Preço que se torna tão difícil de avaliar quão etéreo é o conceito de qualidade para cada um de nós. Já o preço, esse é bem real e os restaurantes devem devem respeitar o comensal com base nele porque há aí muita falta de respeito e de senso a colocar preços nas cartas. Valores absurdos por doses nanoscópicas só porque o restaurante tem hype ou é estrelado ou por menus de degustação que consideram ser dignos de Bacco quando na realidade são uma miscelânea de pratos sem qualquer critério, ordem ou narrativa.

BELCANTO - Já ganhou! A promoção PAGUE 1 LEVE 2 nunca me soube tão bem. Ter um jantar que custaria 454 eur por 227 eur - 12 momentos, 4 vinhos de mesa mais um vinho licoroso - é ficção científica e só em tempos interessantes se consegue tamanha façanha. Sem grandes alardes, a refeição mais "barata" até à data. Já se pagasse €454,5 em "tempos de paz", me custaria aceitar o valor da refeição. Seria a promoção inversa: Pague duas estrelas  e leve apenas uma... 


Obrigado José, porque mesmo omnipresente mostras que és chef para duas estrelas Michelin aliadas a promoções de hipermercado. 

E isso mostra adaptação. A chave Darwiniana para o sucesso de qualquer espécie.

@gulasdosardinha

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