Gulas@ALMA

O estado de Alma é tão importante como o estado Físico, o dos sentidos. Estes dois balançam num equilíbrio tão ou mais saudável quanto a vida que decidimos viver. Eu ando a dar tudo aos sentidos e paradoxalmente é a alma que agradece...

Tenho ainda muito para viver, para experimentar e tenho mantido a alma alinhada nesse princípio. Porque ela, a alma, é como devem ser todos os paraquedas: Funciona melhor quando está aberta.

E fora da caixa há um admirável mundo novo onde "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena", Fernando Pessoa dixit.

Hoje, atiro-me de corpo e alma a partilhar convosco a diferença entre:

1) Restaurantes que passam de zero para uma Estrela Michelin, trocados por miúdos.

2) Restaurantes que passam de uma para duas Estrelas Michelin, trocados por miudos.

(Não, não tenho um ponto (3) porque não é habitual comer fora (de fronteiras) e por isso 3 estrelas para mim só olhando para o céu!)

Nota prévia do "trocado por miúdos": Há cinco critérios de avaliação reconhecidos publicamente para atribuição dos "Macarrons" Michelin. Quero não só evitá-los como trocá-los, neste exercício, por critérios mais empíricos e espirituosos ou estaria a escrever mais um texto jornalístico como tantos que por aí andam. Isto é uma "opinação gastronómica" e os critérios são dela recorrentes i.e: vem da minha experiência.

Critérios Michelin:

1) Qualidade dos produtos
2) Domínio do sabor e técnicas culinárias
3) Personalidade do chef na sua cozinha
4) Relação qualidade/preço
5) Consistência entre visitas

Critérios MICHELÃO:
(como são o superlativo absoluto sintético, têm designações mais pomposas!)

1) Alinhamento com o Gourmet Rural
2) Índice Pele de Galinha
3) Taxa de Paciência
4) Consistência do Oráculo
5) Risco de Default

Numa perspectiva simplista, passa de ZERO PARA UMA ESTRELA quem cumpre todos os critérios Michelin acima, nos mínimos que eles consideram olímpicos. Alguns mais vaporosos que outros (e discutíveis) mas conseguimos engolir isso.

Passa de UMA PARA DUAS ESTRELAS quem cumpre os critérios Michelin e ainda tem um conceito vincado, cheio de carácter e tão característico que não preciso de abrir os olhos para saber em que restaurante estou.

Passar de DUAS PARA TRÊS ESTRELAS?

Peço a alguém que me ajude. Mas desconfio que mete ficção científica pelo meio...

Agora vou tentar encaixar o ALMA nos Critérios MICHELÃO, fruto da minha experiência:

ALINHAMENTO COM O GOURMET RURAL
O Gourmet Rural, como o nome indica, gosta de comer bem. Mas gosta também de perceber aquilo que lhe metem à frente. Gosta do ingrediente pelo ingrediente. Se tem molho, quer é saber o que leva, se é cozinhado a baixa, media, alta temperatura ou a vácuo, quer é saber se é cozido, grelhado ou estufado. Ponto. O Gourmet Rural é o português que sabe comer bem, tem acesso à qualidade de produto e é isso que encontramos no seu frigorífico e congelador. Seja barato ou caro. Mas é também o português que sabe que todos gostamos de aviar 4 dúzias de sardinhas a cada fim de semana de Verão mas se assim for, acabamos todos sem sardinhas em poucas décadas. Por isso advoga em alternar sardinha pelo bom carapau, sarda, cavala, ferreira, besugo, sargo, anchova e até taínha que as há bem boas. O Gourmet Rural está nos antípodas da cozinha francesa clássica mas se for preciso come e aprecia porque também ela é saborosa. Mas faz-lhe espécie não conseguir perceber puto do que lá está, tal é a quantidade de molhos, pontos de cozedura, reduções e ervas aromáticas. Simplesmente prefere algo mais simples, (passo o pleonasmo).



ALMA - Comida cheia de sabores individuais que fazem o todo, sazonal e sustentável como foi o caso de uma cavala braseada que me soube melhor que muitas garoupas e chernes ou uma azevia, peixe tipo linguado, barato e mais típico do Algarve que me soube como o melhor dos pregados. Tamboril com os sucos e redução das espinhas do peixe (e aproveitamento da respecriva geleia) que mostra "Alentejanismo" profundo. Sim, porque quem melhor que um Alentejano para aproveitar tudo o que o porco tem, das orelhas até às patas?! Também isso é sustentabilidade com a diminuição do desperdício. ALMA passa o teste do Gourmet Rural com distinção!



ÍNDICE PELE DE GALINHA
Independente da temperatura da sala, que pode dar uma resposta fisiológica inata: frio dá pele de galinha, calor dá gotas de suor no cachaço, aqui, a pele de galinha é um tal estado de alma que ao atingir o Zénite, após a primeira garfada (só vale a primeira), dispara uma resposta hormonal de elevada excitação que se reflete em pupilas dilatadas, salivação intensa, encartilhanço dos dedos mindinhos dos pés e, claro... pele de galinha.



ALMA - Conseguiu isso em alguns pratos como a interpretação do Henrique da Açorda de Bacalhau à Alentejana, do Leitão Confitado ou da Sopa de Peixe e Marisco com algas. Lá está: Pratos interpretados da nossa génese gastronómica, que evoluiram mas identificáveis na sua composição e que conseguem manter-se incríveis de sabor, fazendo a ligação ao Gourmet Rural. E como diria Raul Solnado,: Aquilo não me deu pele de galinha, deu-me uma capoeira em cada braço!



TAXA DE PACIÊNCIA
Aqui saímos da cozinha e centramo-nos no serviço. Uma componente que se torna tão mais importante quanto sofisticada é a cozinha de um restaurante. Na Tasca da Marreca, em Burrunhais de Cima, o prato vem para a mesa e a única coisa que considero perguntar (e ter algum feedback do empregado) é se tem piri-piri e se sim, se é daqueles que levanta um morto ou dos que só fazem cócegas no céu da boca. Num restaurante de autor, com a personalidade que deverá ter, vou perguntar 100 x mais coisas e espero igual nível de paciencia do dedicado empregado de mesa, como espero da Marreca em descrever o seu piri-piri.



ALMA - O Duarte - empregado de mesa destacado para a nossa experiência - tinha toda a disponibilidade para isso e se fosse preciso - como foi - enviar informação adicional por email após a refeição, envia (pedi a descrição dos vinhos que provámos e em 2 horas estava no meu email, impecavelmente formatado num PDF e claro como a água - neste caso vinho).



CONSISTÊNCIA DO ORÁCULO
Mantemos as agulhas no serviço. E de quão profissional, dedicado e apaixonante ele pode ser. Aqui premeia-se a honestidade em detrimento da chica-espertice, o conhecimento acima da sabedoria popular (que vale noutros casos). Se pergunto ao empregado porque está o meu peixe grelhado como o faria o Diabo no inferno e ele me diz que aqui na casa grelhamos o peixe assim... Ou se posso acompanhar o bitoque com arroz em vez de batata frita e ele me diz que nao têm arroz, fico pior que estragado. Ou como me disseram no outro dia quando já estávamos a comer as pizzas e o pão de alho de entrada ainda não tinha chegado: - Desculpe mas o nosso pão de alho é uma receita que demora muito tempo a fazer. PelamordeDeus... Mas há quem vá mais longe e me diga, como me disseram num boteco da Nazaré, que o peixe - que jurei a pés juntos não ser fresco - é fresco sim senhor porque ainda o descongelámos esta manhã!



ALMA - O Oráculo responde a todas as perguntas com exactidão, clareza e contexto. Assim era o Duarte. Um empregado que estava a servir à mesa com enorme gosto e respeito pela função que desempenhava e passava a ideia que poderia perfeitamente ser um ajudante de cozinha, um sommelier (os tipos que apresentam e servem os vinhos num restaurante) ou um comerciante das melhores carnes, peixes, hortícolas ou especiarias. E com profissionais como este e um ÍNDICE DE PACIÊNCIA alto, podemos ficar à mesa um dia inteiro.



Mas nesse êxtase todo e na disponibilidade total para ficarmos à mesa o dia inteiro a massajar os sentidos, passamos para o último criterio "Michelão", o RISCO DE DEFAULT.

Aqui podiam encaixar os conceitos de Share of Wallet, Value for Money ou Preço Psicológico. Ou ainda a relação Qualidade/Preço que se torna tão difícil de avaliar quão etéreo é o conceito de qualidade para cada um de nós. Já o preço, esse é bem real e os restaurantes devem respeitar o comensal com base nele porque há aí muita falta de respeito e de senso a colocar preços nas cartas. Valores absurdos por doses nanoscópicas só porque o restaurante tem hype ou é estrelado ou por menus de degustação que consideram ser dignos de Bacco quando na realidade são uma miscelânea de pratos sem qualquer critério, ordem ou narrativa. Só conheci um resturante na minha curta vida em que o preço praticado é infinitamente menor que a minha percepção de qualidade (em Lisboa...) e chama-se Grelhados de Alcântara. Apareçam lá e tirem as vossas ilações (passo a publicidade).

ALMA - Não se pode dizer que chumbe neste critério MICHELÃO mas os dois menus de degustação do Henrique (Alma e Costa a Costa, a 110 e 120 euros, respectivamente), incluem, na sua maioria, pratos com ingredientes de preços acessíveis para um projecto de fine dining. Excepção do Foie Gras e do Carabineiro. Nesse sentido, pagar uma volta completa por dois menus de degustação, um pairing de vinhos base (há um mais caro) e dois copos de vinho extra para a minha mais-que-tudo, considero demasiado (embora considere que o pairing que escolhi tem um preço justo de 60 euros). E para os mais distraídos, uma volta completa são 360 graus. É converter em euros... Daí ao risco de default é um tiro - sendo que default é a capacidade de honrarmos os nossos compromissos monetários para com terceiros. Não sei se consigo pagar o Gás, a Luz e a Água este mês mas que a experiência valeu cada garfada, valeu...



E para quem teve a paciência de chegar ao final desta minha "opinação", só me resta dizer uma coisa:

A minha ALMA está parva!

@gulasdosardinha

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